“Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas envelhecer.”
(Carlos Drummond de Andrade, em Passagem do Ano)
Parece que revisar o ano que passou, fazer balanços e, especialmente, eleger os destaques disso e daquilo, constitui inarredável e curiosa doidice universal. Se há de ter algum sentido, pois muita gente se mete nisso e sempre, vou fazê-lo também, naturalmente ao meu modo, como quem divisa o que merece viver em sua memória almost full.
Bebi belos vinhos no ano que passou, e as provas que faço, registro-as quase todas, desejoso de compartilhá-las na melhor ocasião. Os caldos aqui referidos e comentados obtiveram notas entre 16 e 17,5 (quatro estrelas: ótimo vinho) ou entre 18 e 20 (cinco estrelas: excelente vinho ou, no limite, excepcional), numa escala em estilo europeu, de 0 a 20 pontos. Mas o mais importante é que esses eleitos foram sempre os que mais me alegraram, intrigaram ou surpreenderam. Como a lista se fez espaçosa, divido-a em algumas partes desiguais, sem uma ordem patente, cada qual com uma certa conjunção de origens e estilos.
É isso. Espero que gostem das escolhas e possam apreciar os vinhos.


Château La Pointe 2000 (Pomerol) – Corte de Merlot (75%), Cabernet Sauvignon (15%) e Cabernet Franc (10%), que maturam por cerca de 18 meses em barris de carvalho (1/3 novos). Os vinhedos, de solos saibroso, saibro-pedregoso e argiloso, assistem no sudoeste de Pomerol, região próxima a Libourne. No início, o vinho rubi escuro, quase sem reflexo, aparece muito fechado, com notas de baunilha e alguma fruta vermelha (groselha). É preciso não ter pressa, pois se há de acender em seguida, revelando complexos aromas trufados, tostados e apimentados, para depois sugerir caixa de charuto, folha de tabaco, outra vez frutas vermelhas, além de agradável toque mentolado. É uma garrafa para algumas horas depois de aberta. Taninos ainda bem sensíveis, mas de ótima qualidade, sugerindo que o vinho vai arredondar se guardado por mais uns anos. Bela presença gustativa, confirmando as impressões olfativas. Excelente fim de prova. (*****) (18)
Chateau Lascombes 1998 (Margaux Grand Cru Classé) – Outro belo Bordeaux, agora da margem esquerda. Entram na cuvée 50% de Cabernet Sauvignon, 30% de Merlot, 5% de Cabernet Franc e 5% de Petit Verdot. Muito equilibrado, com ótima estrutura, já pronto, com taninos de primeira, que ainda permitem longa guarda. Abriu-se rápido, com intensidade e complexidade marcantes (boa fruta silvestre madura, notas vegetais, mentoladas, e ainda especiarias, condimentos, couro e fumo). Ótima acidez, aveludado, apimentado e mentolado, com um belo fim de prova – no nariz, no paladar e no copo já vazio. (*****) (18)

De Martino Single Vineyards Pinot Noir 2004 – Impressionou-me muito bem este Pinot: bela cor (rosa escuro tendendo levemente ao granada), ótima estrutura, instigante buquê: frutas silvestres entremeadas por notas terrosas, de folhas secas, balsâmicas e especiadas. Nada de fruta em compota. 13,5 de álcool. Uma ponta de austeridade, que talvez se deva à vinificação com o engaço ou parte dele, confere-lhe estrutura e sugere longevidade. Longo final de prova. Um belo Pinot Noir de Casablanca, um dos melhores de fora da Borgonha que já bebi. (*****) (18)

De Martino Single Vineyards Cabernet Franc 2002 (Maipo) – Este De Martino é igualmente impressionante: fruta fácil, especiarias, terra, notas vegetais, tabaco, mentol, bom nervo, muito vivo e muito elegante, facílimo no paladar. Uma beleza! Excelente fim de prova. (*****) (18)
Terrazas Reserva Malbec 2002 – Belo vinho. Aquela cor rubi escura, densa, típica dos vinhos feitos com esta cepa em Mendoza. Mas difere da média dos argentinos por várias razões: não tem 14,9 ou 15° de álcool, mas 13,5, é extremamente elegante, tem um frutado típico (amoras, ameixas pretas e passas) mas sem exuberância indomada, e envolvido por evidentes e progressivas (o vinho vai-se abrindo) notas florais (recordaram-me violetas, rosas e flor de laranjeira) e um leve toque balsâmico, lembrando muito curiosamente alguns exemplares de Touriga Nacional alentejanos. Há um fundo achocolatado que também não dá o tom, mas compõe muito agradavelmente. Não é “doce” demais, nem tem sabor de geléia de morango e framboesa. Para completar, tem nervo bem na medida. Um bom fim de prova, com média persistência. Era a segunda e última garrafa de nossa adega. A primeira, bebemos já deve haver um ano ou mais. Gostei muito dela, mas penso que o tempo beneficiou esta segunda, que estava no ponto e sem poréns. (****) (17)
Fournier Puilly-Fumé 2004 (Loire) – Fumado típico da Sauvigon Blanc da região, seco, com frescor e vivacidade, notas minerais e um toque levemente untuoso, boa presença no palato e elegância. Bom fim de prova. (****) (16,5)